VAlte. (Refº) Luiz Philippe da Costa Fernandes
1 – Introdução
Quando minha turma completou 60 anos na Marinha (2012), como parte das comemorações, editou-se um livro para registro das reminiscências da vida naval de seus componentes. Minha contribuição resultou em artigo intitulado “Fragmentos de minha vida na Marinha – A Hidrografia que eu vi”. Ora relendo a matéria, ocorreu-me que a parte relativa à Hidrografia pode ser objeto de interesse maior do que o de uma única turma de oficiais. Afinal, tais lembranças hidrográficas remontam às impressões colhidas da DHN, na visão de um jovem, cerca de 70 anos atrás. A presente matéria reproduz, na essência, o texto original, que foi bem ampliado e atualizado. Creio que, mesmo correndo o risco de alguma imprecisão, tais reminiscências sempre servirão de testemunho de um passado que, com as desculpas pelo lugar comum, não volta mais …
2 – A Hidrografia vista por um jovem!
Talvez as primeiras lembranças da Hidrografia, no meu caso, sejam as mais originais, pois representam memórias não de um adulto, mas as de um jovem – devia ter 14, 15 anos de idade. Na ocasião, a minha fama – e deviam existir boas razões para isto – era a de ser muito irrequieto. Assim, nas férias de fim de ano que àquela época prolongavam-se gostosamente por janeiro, fevereiro e, creio, até parte de março, ocorresse uma preocupação de meus pais no sentido de dar-me alguma ocupação, se possível fora do lar. No contexto, a solução veio da parte de meu pai (1), que passou a fazer com que eu o acompanhasse em algumas fainas que executava, por força de suas atribuições na Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN), já oficial superior que era.
Assim, vejo-me, de uma feita, frequentando a praça d’armas do NHi “Rio Branco”, juntamente com os oficiais alunos de uma turma de Hidrografia que realizavam o seu levantamento de fim de curso, na Baia de Guanabara. Não sei se exatamente no mesmo período, “realizamos” (incluo-me na faina, pois também participava, mesmo que só observando …) o levantamento topográfico em um hangar do Galeão, imagino hoje, remanescente da Aviação Naval.
Por mais de uma vez, também acompanhei meu pai, então instrutor de Magnetismo, ao Observatório Magnético de Vassouras, onde as turmas de oficiais alunos do curso realizavam trabalhos relativos à matéria. De tais estadas na aprazível cidade fluminense, tenho perfeita lembrança do astrônomo Caetano, responsável por tal Observatório, pelo seu caráter completamente desligado das coisas mundanas. De fato, não era incomum que portasse sapatos de cores diferentes: um preto e o outro marrom …
Talvez a experiência mais marcante dessa fase tenha sido a decisão de meu pai, já então Vice-Diretor da DHN (ou “Repartição” (2) como os mais antigos a chamavam, carinhosamente): passaria eu a acompanhá-lo, diariamente, à Diretoria, desempenhando atividades correspondentes às de um funcionário. E isto passou a ocorrer com o maior realismo possível: “batia ponto” diariamente e vestia macacão igual aos demais. Isso porque minha primeira “incumbência” foi estagiar na oficina mecânica anexa à garagem da DHN, onde pontificava o tenente auxiliar Romano. A provável expectativa do “velho” é que eu auferisse algum proveito, adquirindo noções sobre motores, que me poderiam ser úteis, posteriormente. Lastimo desapontar o leitor, mas não existiu, no caso, o esperado final feliz – simplesmente por falta de aptidão, que carrego até hoje. Não apreciava nada acompanhar as atividades de reparo mecânico e o tal estágio na oficina de motores em nada resultou de aprendizagem para mim.
Ainda daquele tempo a lembrança do meu primeiro voo, nas proximidades do Rio, acompanhando meu pai em atividade aerofotogramétrica. À época, a DHN dispunha de um avião bimotor para possibilitar que a Diretoria efetuasse tais serviços com seus próprios meios (3). Uma aventura e tanto!
Também me recordo do auxílio que prestava a meu pai quando ele passou a elaborar, em domicílio, tábuas para cálculos de magnetismo, se estou bem lembrado, utilizando pequena calculadora manual que ele trouxe da DHN. Minha contribuição era, a cada virada da manivela da máquina, repassar para ele o valor que aparecia no seu mostrador. Tal máquina, de fabricação sueca, era muito usada à época na DHN, em todos os seus setores (figura 1) (4).
Ao relembrar tais experiências – jovem ainda –, ora tenho dúvidas se o único propósito paterno era o de evitar maiores estrepolias em casa. Creio que havia outro, subjacente: como desde cedo manifestei desejo de ser oficial de Marinha e seguir a especialidade de meu pai, talvez houvesse também a intenção de proporcionar-me um contacto mais direto com a Marinha, para que pudesse confirmar se era a vida que realmente desejava.
Feito o concurso para o Colégio Naval, lembro-me bem da satisfação que tive ao saber de meu sucesso, e com bom resultado (15º colocado!). Afinal passara direto, ao final do ginasial, sem o auxílio dos cursos preparatórios afamados da época.
3 – A DHN do passado
A propósito de minha intenção de entrar na Marinha, sempre fui alertado sobre a necessidade de uma decisão madura a respeito, haja vista as agruras da vida do hidrógrafo. De fato, as dificuldades eram de tal monta que havia quem se arrepiasse à simples menção de servir na Hidrografia. As comissões, em navios antigos e adaptados, exigiam um enorme esforço de manutenção, não raro permanecendo os navios em reparos inesperados em portos fora do Rio. E havia de manter o entusiasmo, mesmo em condições de menor rendimento do trabalho. Por outro lado, tais comissões eram muito prolongadas. Numa época em que a Esquadra se movimentava pouco, as comissões hidrográficas duravam quatro, cinco meses ininterruptos, em casos especiais, até mais. Outra característica curiosa que até hoje não sou capaz de entender satisfatoriamente: a razão pela qual tais longas viagens eram iniciadas em ocasiões como imediatamente antes do carnaval ou das festas natalinas. Havia, creio, uma intenção de marcar posição pelo alto nível de sacrifício e dedicação exigido pelo trabalho hidrográfico. Tenho receio de que tal postura tenha afastado da especialidade muitos bons oficiais que não desejaram arrostar tais dissabores, em prejuízo da família. Faço um parênteses para deixar claro que tal mentalidade, há muito, não mais predomina na DHN.
Parece a hora de mencionar o espírito da Diretoria naquele tempo, para ser um pouco mais preciso, nas décadas de 40 e 50. Despontavam alguns oficiais que, por gosto, além de suas atividades administrativas normais, estudavam a fundo determinada matéria que mais lhes atraísse, acabando por se tornarem ícones obrigatórios. Cito, de pronto, o Serpa (5), dedicado à Geodésia; o Franco (6), às Marés; o Paulo Moreira (7), à Oceanografia; o Gitahy (8), à Cartografia; e o meu próprio pai, com respeito à Topografia e ao Magnetismo. Como forma de complementar os parcos vencimentos (sim, já àquela época! …) não era incomum que esses homens produzissem, fora de expediente, manuais e trabalhos diversos, de fôlego. Verificado o valor do trabalho por Comissão formalmente designada, abria-se a possibilidade de ceder os direitos da obra à Marinha, em troca de pequena compensação financeira …
Seria também impossível deixar de indicar Oficiais que, pelo seu valor e forte personalidade, impunham-se a seus pares e marcaram profundamente a DHN e, mesmo, a Marinha, em alguns casos. Cito, nominalmente, alguns deles. com os quais cheguei a servir: Alte. Ernesto de Mello Baptista (diretor-geral de Hidrografia e Navegação, em duas ocasiões, futuro ministro da Marinha), Alte. Julio de Sá Bierrenbach (diretor), Maximiano Eduardo da Silva Fonseca (futuro ministro da Marinha), Paulo Irineu Roxo Freitas (Vice-Diretor), Alte.Orlando Augusto do Amaral Affonso (Vice-Diretor e Diretor) e Paulo de Castro Moreira da Silva, já citado.
Até a década de 60, pelo menos, ainda vigia certa mentalidade que considerava dispensável qualquer complemento acadêmico de formação profissional. Ao hidrógrafo só seria necessário o curso de especialização para que produzisse o que dele esperava a Marinha. Que diferença, felizmente, para a DHN de hoje, onde contam-se, às dezenas, o número de doutores e mestres em oceanografia e meteorologia que, em pé de igualdade com seus pares em reuniões no País ou no exterior, defendem com maior autoridade as posições navais!
4 – Na DHN, como tenente
Após três anos no cruzador “Tamandaré” (9), eis finalmente chegada a hora de apresentar-me à DHN (ainda na ilha Fiscal), em 1961, para, em atendimento à primeira opção pela Hidrografia, cursar a especialidade, que conclui com distinção (10). Éramos apenas nove, incluída a minha pessoa (figura 3). Fica aqui o pleito de saudade aos companheiros que já nos deixaram: Anibal, Bastos, Marcello Alves, Roberto Rodrigues, Espozel, Gama e Kehl.
Gostei do curso, que contava com matérias interessantes como, entre outras, Oceanografia, Hidrografia, Meteorologia, Topografia, Cartografia, Marés e Astronomia de Campo.
Nosso levantamento de fim de curso foi o do porto de Luiz Correa, no Piauí. Do período, algumas recordações mais vivas: o trabalho cansativo e a péssima alimentação, à base de enlatados (até hoje não tolero presuntada!), devido às dificuldades de obterem-se gêneros frescos, no local. Durante algum tempo, o Bastos ficou encarregado de correr os arredores em busca de comida. Por vezes, chegava triunfante, informando que conseguira meia dúzia de ovos frescos e uma galinha! Fica o registro de que a área era (é) muito bonita, com praias extensas de beleza selvagem e sem viv’alma (caso da Pedra do Sal, por exemplo). Destaque, também, para as lindas dunas existentes na região, uma das quais, por nós denominada sugestivamente de Seio de Moça, servia de referência para a sondagem…
Recebido o diploma de hidrógrafo, abria-se ao “calouro” uma primeira e fundamental opção. Havia o ramo da Hidrografia propriamente dito, isto é, a possibilidade de trilhar um caminho muito bem sedimentado e organizado, sempre com metas bem definidas, que visavam o atendimento de um “Plano Básico Cartográfico”. O primeiro constituiu-se, seguramente, um dos que teve maior duração na Marinha (e no País). Com a única interrupção dos trabalhos devida à 2ª Guerra, estendeu-se por 40 anos! A segunda opção estava sendo virtualmente construída pelo Paulo Moreira – a Oceanografia (11), campo atraente e ligado ao conhecimento da massa líquida, seja para o apoio às operações da Esquadra, seja para obtenção de conhecimentos necessários para aumentar-se a pesca.
Por uma questão de equilíbrio à narrativa, há que indicar que a tais atrativos aliava-se, em contrapartida, a falta de maior organização do setor e a inexistência de metas concretas, algo como uma definição precisa do que a Marinha esperava da Oceanografia. Mas, no caso, não há que culpar a MB. Afinal tratava-se de ramo novo de conhecimento pouco explorado em nosso País (embora já fosse objeto de atenção por parte das Marinhas mais avançadas, há tempos). A minha escolha, algo pesarosa, foi pela Oceanografia. O pesar devia-se ao fato de não ignorar que, com aopção, afastava-me também da atividade a que meu pai dedicara toda sua vida naMarinha. Por outro lado, entendo a decisão como um ponto de inflexão importante: apartava-me, naquela ocasião, de qualquer influência paterna sobre minha carreira hidrográfica.
É o momento de realçar a grande influência que Paulo Moreira exercia, na ocasião, sobre os jovens oficiais hidrógrafos. De modo simplista, via-se nele e na Oceanografia, o futuro! Destacava-se de pronto sua simpatia e a enorme facilidade de expressar-se, seja por escrito, seja oralmente. Em resumo, era pessoa muito carismática. A tais virtudes, aliava-se uma carreira singular. Disposto a dedicar-se à Oceanografia a qualquer custo, numa época em que tal ciência era pouco conhecida na Marinha, solicitou licença por interesse particular e foi, sem vencimentos, cursar Oceanografia na Sorbonne, em Paris (e, posteriormente, Meteorologia, na Inglaterra).
È bem conhecida sua marcante contribuição à delegação brasileira que, após a “Guerra da Lagosta”, opôs-se à posição da França, que defendia a tese de que o crustáceo não permanecia no fundo, mas nadava. Assim, segundo o direito internacional vigente à época, não seria considerado recurso natural da plataforma e o Brasil não poderia exercer o direito soberano de exploração, como estado ribeirinho. Paulo Moreira, em defesa da tese brasileira de que a lagosta permanecia no fundo, deslocando-se mediante pequenos saltos, resolveu a questão ao esgrimir o desconcertante argumento, que desarmou os franceses: “se lagosta é peixe, canguru é passarinho” … !
Mais adiante, conseguiu que, ao invés da ameaçadora baixa que rondava o Navio Oceanográfico “Almirante Saldanha”, fosse ele modernizado, para o que retiraram-se seus mastros originais e foi remanejada a sua compartimentagem interna, de forma a que passasse a contar com laboratórios adequados. Em contrapartida, a Unesco forneceu equipamentos de coleta de dados e toda a aparelhagem científica para o navio. Após a promoção a Contra-Almirante sucedeu-se, de pronto, a sua passagem para a reserva, como forma acordada para que se dedicasse exclusivamente à Oceanografia, sem as injunções da carreira. Reconvocado em sequência imediata, foi dirigir o Instituto de Pesquisas da Marinha (IPqM) (12).
5 – As Operações Tridente – Curso de oceanografia no exterior
Após o curso, passei a servir no “Saldanha”, sob o comando do Paulo Moreira. O navio estava imobilizado para remodelação, mas as atividades oceanográficas no mar não podiam ser interrompidas. A solução foi reclassificar o CT “Baependi” como Aviso Oceânico e colocá-lo à disposição da DHN, para tais serviços. A providência se impunha, pois, devido a compromisso assumido junto à Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI), havia que dar partida a uma série de comissões no Sul do continente – as Operações Tridente –, englobando navios oceanográficos do Brasil, da Argentina e do Uruguai. A bordo, vários oficiais destacados do “Saldanha”, incluindo minha pessoa. Tempos difíceis! O “Baependi” jogava muito e caturrava mais ainda, principalmente quando, nas estações oceanográficas (13), permanecia parado por períodos de tempo que podiam alcançar três horas ou mais, em locais de maior profundidade. O pior é que o sistema de calefação não funcionava e o frio era intenso, durante as comissões no inverno, mesmo cobertas abaixo. A idade do navio também causava preocupações. A situação extrema ocorreu quando, após enfrentar uma frente especialmente forte, a força do mar provocou uma rachadura no convés principal que ia de borda a outra.
Ao final do período, a notícia que compensou amplamente as árduas comissões: fora designado para cursar Oceanografia Biológica em Marselha, na Station Marine d’Endoume et Centre d”Oceanographie, pertencente à Faculdade de Aix-Marselha. Permaneci naquela cidade cerca de um ano. Vale mencionar que, comprovada minha falta de base em alguns assuntos do curso que fiz, pós regressar ao Brasil, resolvi cursar, a noite, História Natural (hoje Ciências Biológicas) na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Gama Filho, obtendo, em quatro anos, o bacharelato e a licenciatura.
6 – Na DHN, como comandante
De volta ao Brasil, após estágio no IPqM, regressei à DHN e assumi a Divisão de Oceanografia do Departamento de Geofísica.
Da época, lembro-me bem do intenso trabalho de ampliação e reorganização do Departamento de Geofísica, para o que a DHN, devido à falta de espaço, construiu um pequeno prédio (14) na parte interior do pátio (não visível do mar), que serviu para alojar o Departamento de Geofísica e sua Divisão de Oceanografia, entre outras, (no 1ª andar) e, no andar térreo, instalar uma nova impressora de cartas náuticas, recém-adquirida.
Havia que separar e arquivar devidamente uma quantidade enorme de documentos em pastas próprias, pois Paulo Moreira que até recentemente orientava o Departamento à distância, afastara-se definitivamente, após assumir o IPqM. A faina, dirigida pelo então Chefe do Departamento de Geofísica, Comte. Dimas (15), exigiu grande paciência e tenacidade, e levou um bom tempo até ser concluída. Note-se que Paulo Moreira sabia exatamente onde encontrar cada documento. Mas o fato é que, com sua inteligência, ele não se preocupava em tornar tal arrumação transparente para os demais usuários …
Ainda logo após o regresso à DHN, envolvi-me, com entusiasmo, na construção de cartas de pesca semelhantes às já existentes em vários outros países. De fato, a DHN chegou a publicar algumas, com o suporte na parte pesqueira proporcionado por especialistas na área. Mas, por falta de maior interesse no País, a iniciativa não prosperou (16).
Tive também participação mais direta em episódio de certa importância, que passo a narrar. Como Encarregado da Divisão deOceanografia, estava mal impressionado com o descobrimento casual que era feito, vez ou outra, de navios de pesquisa estrangeiros que haviam operado em águas sob nossa jurisdição com desconhecimento nosso (17). Abro um parênteses para assinalar que, na ocasião, (meados dos 60), tais licenças eram concedidas por um Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, (criado no âmbito do Ministério da Agricultura!), que funcionava precarissimamente, quando havia reunião, em sala da administração do Jardim Botânico. Posso falar de cadeira, pois, representando a Marinha, participei de algumas reuniões de tal Comissão. Devidamente autorizado, efetuei, então, um levantamento sobre o assunto com respeito às “expedições” no mar, com base em diversas fontes de informação, mormente registros publicados em revista da Unesco. O resultado foi preocupante: a quantidade de navios que executara tais atividades sem o nosso conhecimento era grande. Também muito significativa a falta de fornecimento dos resultados colhidos em tais atividades (como de praxe), quando autorizadas (18).
Expediente circunstanciado enviado ao escalão competente deu origem a uma série de providências que culminaram com a assinatura do Decreto nº 62.837, em 1968, que regulou minuciosamente o assunto. Seguiram-se outros diplomas legais que, sem alterar a substância do decreto inicial, melhoraram seu entendimento e/ou sua aplicação
Outro aspecto muito gratificante sob o ponto de vista profissional foi o esforço da DHN, naqueles primórdios da Oceanografia no País, em promover alguma coordenação nacional. Lembra-se que o MCT só surgiu no cenário político mais adiante, em 1985, e o Conselho Nacional de Pesquisas (19), criado em 1951, na ocasião, era pouco atuante em assuntos ligados ao mar. Assim, a DHN, ao início, deu partida em modestas tentativas de harmonizar interesses de pesquisa das instituições científicas que participavam das comissões no “Saldanha” – os chamados “Programas de Trabalho Conjunto” (PTC) –, visando dar condições às instituições oceanográficas civis de ampliação de suas atividades de pesquisa oceânica, mais ao largo, o que não lhes era possível, por falta de navios próprios.
Em 1968, a DHN, com a contribuição do CNPq, tomou iniciativa mais arrojada: promoveu o chamado “Encontro de Diretores de Instituições de Pesquisa do Mar”, para avaliar o estado da arte em cada grande ramo do conhecimento científico e esboçar, até onde possível, programas conjuntos. Na época, já Chefe do Departamento de Geofísica, participei efetivamente do evento, que originou um “Programa Brasileiro Trienal de Pesquisas no Mar”, cabendo destacar o papel nele desempenhado pelo então Vice-Diretor da DHN, Orlando Affonso (20). Tais “Encontros” repetiram-se em dois anos posteriores e deram início à coordenação das pesquisas do mar, no País (21).
7 – Várias comissões – Incursão na Sinalização Náutica
Após comandar o NHi Argus, fuidesignado para o Comando Naval de Ladário. Surpreendentemente, vi-me, como Chefe de Estado-Maior, às voltas com problemas tais como o de estabelecer o plano de segurança da área Ladário, tendo em vista o encontro presidencial Banzer (Bolívia) e Médici, no prédio do Comando Naval. Ou bem estabelecer o planejamento com a marinha paraguaia visando a execução da operação fluvial “Rio Apa” e da “Ninfa I”, subseqüente.
De volta ao Rio, fui aluno do Curso de Comando e Estado Maior na EGN, em 1973. Ao seu final, fui surpreendido com a designação para Encarregado de Navegação do “Custódio de Mello” do ano seguinte. E foi surpresa, mesmo, pois o oficial já apresentado a bordo para assumir tal função, por motivos particulares, acabou não podendo realizar a viagem.
Ao regressar da viagem de instrução, eis-me incursionando na Sinalização Náutica, designado que fui para imediatar o Centro de Sinalização Náutica e Reparos Almirante Moraes Rego, em Mocanguê. Lá permaneci dois anos.
Sobre o meu comando subsequente, no NOc “Almirante Câmara”, não tenho maiores lembranças. Cedido inicialmente por empréstimopelamarinha norte americana, o navio acabou adquirido pelo Brasil. Tratava-se de remanescente de classe que já dera baixa, com motores elétricos e muitas dificuldades de obtenção de sobressalentes, em geral. Sob meu comando, queimou-se um dos seus motores elétricos e, de regresso ao Rio, iniciou longo período de reparo no AMRJ. Queimou-se o motor e também a oportunidade que tinha de fazer mais dias de mar como comandante…
Seguiu-se um bom tempo longe da DHN: na EGN e na Adidância em Buenos Aires e, já almirante, na Secirm, no ComOpNav e no Comcontram. Do período, destaco os cerca de quatro anos na EGN, onde fui instrutor, Encarregado de Área e de dois cursos. No período cursei, com distinção, o então Curso Superior de Guerra Naval.
O período na Secirm foi marcante Na ocasião, a Cirm aprovou o Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira (Leplac) e ocorreu a primeira invernação na Antártica, ocasião em que tive oportunidade de conhecer nossa base no “Continente Gelado”. Com o apoio decisivo do Ministro Henrique Sabóia, também ocorreran bons avanços no Gerenciamento Costeiro e no Plano Setorial para os Recursos do Mar.
8 – Na DHN. como almirante
Finalmente, voltei às origens! Fui designado para dirigir a DHN, onde permaneci três anos (mar 1989 – mar 1992), período de grande atividade, onde pude, com entusiasmo, contribuir, mais diretamente em prol da Hidrografia. E, também, onde ganhei a terceira estrela.
A primeira impressão não foi boa. Não obstante todos os esforços de meus antecessores, as instalações da Ponta da Armação, pouco tempo após a mudança da DHN para lá, representavam um contraponto muito desfavorável em comparação com a “pérola gótica à entrada da baia” – a ilha Fiscal – sede anterior da Diretoria. Ganhara-se em área útil, necessidade imperiosa da DHN que não mais cabia na ilha, mas perdera-se muito em representação. De fato, a grande extensão da área e a quantidade de prédios antigos a manter, aliadas ao período de tempo de certo abandono que se sucedeu após a saída do Centro de Armamento da Marinha do local eram óbices sérios a enfrentar para melhorar as instalações e a aparência geral.
Ao longo de minha gestão, tive oportunidade, em sequência aos esforços de meus antecessores, de equacionar tais problemas. Elaborou-se um Plano Diretor que, após aprovado, passou a dar continuidade às restaurações necessárias, com base em prioridades e metas. Buscou-se a revisão das Normas Permanentes da Diretoria e das Ordens Internas. Criada a Superintendência de Navios, desafogou-se um pouco a Diretoria. Vez primeira, avaliou-se devidamente o Plano de Desenvolvimento do Programa Oceano (que visava o apoio à Esquadra) por meio de seminário específico Construiu-se um auditório moderno. Transferiu-se a praça d’armas (22) do NOc “Saldanha”, que acabara de dar baixa, para o interior de salão da Diretoria, mantido, cuidadosamente, o seu mobiliário e a disposição original. Reformulou-se o Regulamento da Diretoria, com uma alteração marcante: os Departamentos de Hidrografia e de Geofísica, então existentes, fundiram-se em um único, com a atribuição de analisar e processar os dados obtidos, seja nas comissões hidrográficas seja nas oceanográficas. Acredito que tal alteração tenha servido de base para mudança estrutural ocorrida vários anos após que resultou na criação do atual Centro de Hidrografia da Marinha. Tive o trabalho muito facilitado por uma equipe valorosa de oficiais e por um excelente Vice-Diretor, antigo companheiro de lides oceanográficas (23).
Em resumo, ao transmitir o cargo, tive a satisfação íntima do dever cumprido.
9 – Comentário final
Após a DHN, comandei o 5º Distrito Naval, onde encerrei a carreira (1994), na mesma terra que foi o berço de meu avô – Walter Perry e de meu bisavô – Felinto Perry, ambos oficiais de Marinha.
Quis Deus que, após passar à reserva ainda tivesse oportunidade de contribuir em atividades que muito me atraem, seja como Secretário-Executivo de uma Comissão Nacional Independente sobre os Oceanos (CNIO), sediada no Conselho Nacional de Pesquisas, seja em um Centro de Excelência para o Mar Brasileiro (Cembra), do qual fui cofundador (2009) e onde desempenhei as funções de Coordenador Executivo durante os primeiros cinco anos de existência e ainda continuo em atividade.
Como não podia deixar de ocorrer, minhas reminiscências navais são fortemente marcadas pelas comissões na Hidrografia. Hoje, em perspectiva amadurecida pelo tempo, acredito que certas qualidades, muito valorizadas na DHN – além de todas as virtudes morais comuns a todos os Oficiais de Marinha –, mesmo quando servindo fora da rede, foram-me de grande valia em toda a carreira. É o caso da tenacidade, da organização, da meticulosidade, do espírito de sacrifício, do trabalho em equipe. Por isso mesmo, acho que não cabe ênfase à minha contribuição à Hidrografia. Dela recebi muito mais, em troca!
VAlte. (Refº) Luiz Philippe da Costa Fernandes
Hidrógrafo e oceanógrafo. Comandou os Navios Hidrográficos Argos e Almirante Câmara. Como almirante, foi secretário da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, diretor de Hidrografia e Navegação e comandante do 5º Distrito Naval, entre outros cargos. Na reserva, foi secretário executivo da Comissão Nacional Independente sobre os Oceanos e coordenador executivo do Centro de Excelência para o Mar Brasileiro (Cembra), do qual é cofundador. Coautor do livro Amazônia Azul – O Mar que nos pertence.
Notas de Rodapé:
1- Erico Bacellar da Costa Fernandes – oficial hidrógrafo. Promovido a Vice-Almirante, após passar à inatividade.
2- Ainda influência da época em que a DHN era a “Repartição Hydrográfica” (que funcionava conjuntamente com uma “Repartição de Pharóes” e outra, a “Central Meteorológica”).
3- Algum tempo após, em trágico acidente, a aeronave chocou-se na Serra de Petrópolis, falecendo no local, além do piloto, um tenente aviador, mais três pessoas.
4- Após alienadas, em grande quantidade, adquiri uma das que se apresentavam em melhor estado, pelo seu valor afetivo.
5- Alexandrino de Paula Freitas Serpa, promovido a Almirante, posteriormente.
6- O Alte. Alberto dos Santos Franco, já na reserva, foi da presidência do então Bureau Hidrográfico Internacional (BHI).e diretor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo.
7- Trata-se do Vice-Almirante Paulo de Castro Moreira da Silva, marco da Oceanografia no País, a quem voltarei a referir-me mais adiante. Deu o nome ao atual Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira (IEAPM), como justa homenagem póstuma.
8- Alte. Paulo Gitahy de Alencastro, dirigiu a DHN durante cerca de cinco anos (1970-75).
9- Após a viagem de instrução, tive a opção de escolher a comissão, entre as possibilidades existentes. Minha escolha foi pelo saudoso cruzador “Tamandaré”, pois achei que seria desejável servir, como primeira comissão, em um navio operativo da Esquadra; em segundo lugar, , mais emocionalmente, pois meus brios de aspirante haviam se encantado (1955) com a entrada, na barra, do “Tamandaré”, conduzindo Carlos Luz e Carlos Lacerda, entre outros, na companhia do então famoso Comandante em Chefe da Esquadra, o Pena Botto (enquanto os aspirantes agitavam lençóis e toalhas brancas, das janelas dos seus camarotes …).
10- Algum tempo após, recebi da DHN, como premiação, pequena placa entregue aos Oficiais que concluíram seus cursos com distinção. E recebi, também, placa idêntica devida a neu pai, já falecido, que concluíra, também com distinção, o seu curso, realizado 20 anos antes. Creio que pai e filho cursarem o mesmo curso com distinção deva ser inédito na Marinha.
11- Melhor dizendo, a Geofísica, de forma a englobar, também, a Meteorologia.
12- Foi nessa época que recebeu, em São Paulo, o prêmio “Henning Boilesen”, de “Personalidade do Ano” e proferiu memorável oração, que repercutiu na mídia nacional, e que assim termina, com fecho de ouro: “Vivemos a citar, com ufanismo, o primeiro galanteio que a jovem Terra de Vera Cruz recebeu do cronista do Rei Venturoso: ‘Esta Terra, Senhor, é chã e mui formosa, e em se querendo dar-se-á nela tudo, mercê das águas que tem’. Mas a frase não termina aí, e deve ser citada inteira: ‘Mas o importante mesmo” – continua o cronista – “é salvar esta Gente’”.
13- Locais pré-estabelecidos onde o navio paira sob máquinas (ou fundeia) e são coletadas, em garrafas especiais, amostras de água para determinação, entre outros, dos valores de salinidade, nitratos, nitritos e fosfatos e medida a temperatura da coluna d’água, em várias profundidades.
14- Chamado, depreciativamente, de “barraco”, devido à sua arquitetura, que nada tinha de gótica, embora alguns toques de acabamento buscassem diminuir o choque estético. O fato é que, somente após obter tal espaço, a Oceanografia teve condição de desenvolver adequadamente suas atividades, na DHN.
15- VAlte (Ref) Dimas Lopes da Silva Coelho.
16- Maiores detalhes em artigo de minha autoria publicado nos Anais Hidrográficos Tomo XXIII (1965) – “Oceanografia Biológica e a Carta Náutica”.
17- Enviado a Fortaleza, para inspecionar o navio de pesquisas norte-americano “John Elliot Pillsbury”, que realizara pesquisa não autorizada em nossas águas, cheguei a recolher amostras geológicas coletadas indevidamente.
18- Embora já fosse prática comum oficiais da DHN embarcarem em navios de pesquisa estrangeiros, devidamente autorizados, como “observadores”. Eu próprio fiz tal papel no navio de pesquisas norte americano “Undaunted”.
19- Atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
20- Alte. Orlando Augusto Amaral Affonso, já mencionado, chegou a ser Vice-Presidente da Comissão Oceanográfica Intergovenamental e Presidente do então Bureau Hidrográfico Internacional.
21- Mais detalhes sobre os primórdios das atividades de coordenação oceanográfica no País e sobre a fiscalização das atividades oceanográficas por navios estrangeiros em artigo de minha autoria, publicado na Revista Marítima Brasileira v. 139 (jul/set 2019) intitulado “A Oceanografia no Brasil –Os primeiros passos na coordenação de suas atividades e o seu controle e fiscalização”.
22- Local de refeição dos Oficiais. Em priscas eras, lá eram armazenadas as armas existentes a bordo, para maior segurança.
23- CMG (Ref) Lucimar Luciano de Oliveira. Assumiu a Vice-Diretoria após a baixa do Saldanha, onde foi o último Comandante. Dele a sugestão de transferir, para a DHN, a praça d’armas do navio.
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