por Gustavo Pacheco – 14/08/20
Os barcos tem vida, tem alma e tem nome. Respiram, se alegram, se mostram, tem cheiro, tem estórias e algumas vezes, agonizam. Nessa condição choram silenciosos e pedem ajuda. Resgatar um veleiro clássico parado e dar-lhe uma nova vida é uma missão nobre de grande responsabilidade, um comprometimento histórico. É uma missão conectada a tradição da vela. Um veleiro clássico velejando é um verdadeiro túnel do tempo. Nos leva a outra dimensão . Mostra de onde viemos. Mostra como somos.
BRIEFING DE USO
Uma obra de recuperação de um clássico deve ser orientada para atingir os objetivos do proprietário do barco. Para tanto, é preciso ter um briefing do uso do barco, levando em consideração vários fatores como: Budget para a obra. Tempo de realização da obra. Passeios curtos ou cruzeiros longos ? Somente cruzeiro ou também participação em regatas clássicas ? Quem irá velejar o barco? Utilização do interior do barco. Conforto a bordo. Número de pessoas para pernoite se for o caso. Numero de tripulantes máximo. Liquidez. Quem irá cuidar do barco. Como e onde será guardado.
Budget para manutenção. Resultado estético. Performance desejada.
Com base nessas respostas e outras, pode-se então fazer um planejamento do tipo de recuperação que irá ser executado para se obter o resultado desejado. O barco tem de prover prazer.
RESTAURAR OU REFORMAR ?
-Restaurar significa recuperar o veleiro mantendo tanto quanto possível próximo ao original.
-Reformar significa dar uma nova vida ao barco, sem contudo ter a obrigação de manter a originalidade.
Esse é um dilema comum a quem vai iniciar a recuperação de um clássico, restaurar ou reformar ? Existe um outro fator que é o dinamismo e evolução intrínsecos aos barcos “vivos”. Um barco está vivo quando veleja, independente se está restaurado ou reformado, está vivo, e portanto feliz, cumpre sua função.
No início de um processo restauração volta-se ao passado revendo-se os desenhos originais e especificações, fotografias antigas, artigos da época, afim de resgatar a concepção original, e dessa forma dar prosseguimento ao processo utilizando-se os materiais, equipamentos e estética da época.
Já no processo de reforma, existe uma maior liberdade geral, permitindo que modificações sejam executadas gerando vários fatores: maior rapidez na execução da obra de reforma, barateamento da obra, maior praticidade na manutenção e uso do barco, melhoria da performance do barco, melhorias no layout interior e etc.
COMPROMETIMENTO ESTÉTICO
Um barco clássico já traz consigo um DNA e uma estética própria de uma época.
Manter dentro do possível esse estilo, essa vibração, essa “onda” e essa classe, é oque faz com que o barco seja admirado, por quem conhece e por novatos. Um clássico harmônico, bonito e bem cuidado, com boa história e bem velejado é um monumento e um sinal de respeito a tradição da vela. É uma joia viva.
ESTILO
O estilo do barco, e que reflete também o estilo dos donos, se reconhece principalmente pela sua apresentação externa. Essa é a primeira impressão, o “look onda” do barco . Cor, acabamentos, ferragens, nome, balanço entre partes envernizadas e pintadas, balanço entre materiais antigos e modernos, mastreação, tecido e corte das velas, cor das capas, tipos e cor dos cabos, uso de pouca eletrônica.
O cuidado com o barco. Esses elementos são a personalidade do barco.
O interior também reflete muito a personalidade do barco. O layout, estilo e acabamentos mostram o que realmente o barco é e a que veio. O interior é menos exposto, é um ambiente mais íntimo e portanto aí se vê a proposta verdadeira do barco.
Um layout novo simples, claro e leve, com um desenho de mobília despojado, de poucas portas e prático mas bem executado, preservando as características sutis de acabamento da época e mostrando partes estruturais do casco, denota um estilo de sofisticação inteligente para se estar bem e com classe no mar. É uma opção corajosa de desligamento da originalidade do interior. É como se trocasse o “coração” do barco, inserindo um novo vibrante, mas mantendo o mesmo corpo exterior, agregando uma nova força jovial ao barco.
A preservação do layout interno original, restaurado e preservando-se as ferragens, equipamentos, textura, pintura e acabamentos de origem, refletem um estilo mais comportado, menos ousado e mais tradicional. Um interior original traz de volta a atmosfera antiga e a história do barco, mantendo uma forte conexão com o passado.
MASTREAÇÃO
Sistema de propulsão. Essa é uma outra forma de se denominar a mastreação de um veleiro. Mastro e velas transformam a força do vento em deslocamento, fazem o barco navegar com velocidade e em equilíbrio. Sem propulsão um veleiro é uma balsa errante, boia mas não vai a lugar algum.
Portanto, no estudo para a execução da mastreação de um veleiro clássico, o primeiro olhar deve ser o da segurança. Seja qual for o estilo e materiais escolhidos para a mastreação, deve-se levar em conta a segurança do sistema.
A mastreação reflete a personalidade de um veleiro. Sua concepção geral, material do mastro, cor, dimensionamento, acabamentos e terminações interferem no estilo do barco, dando um ar ora leve e simples, ora mais pesado e complicado.
Se o caminho a seguir for o de repetir a mastreação original, essa questão da segurança fica resolvida, pois o sistema já foi testado e aprovado anteriormente.
Basta reproduzir o sistema inteiro respeitando os planos originais, com pequenas atualizações e assim o barco receberá uma mastreação nova ( sempre recomendado) mas manterá o estilo antigo. Nada se compara a beleza de um clássico com um mastro de madeira novo envernizado, isso é para poucos, os abonados, ousados e puristas Se o caminho a seguir for o de atualizar e/ou modificar a mastreação, deve-se levar em conta que muitas vezes os materiais modernos são “estáticos”, ou seja não são elásticos, e dessa forma transmitem os esforços gerados pelo vento ao casco e fuzis de
forma enérgica e instantânea sem amortecimento, o que pode forçar além do desejado um casco já antigo e não projetado e construído para isso. Por outro lado, os materiais modernos são mais leves para suportar o mesmo esforço, e isso abre novas possibilidades na mastreação.
Seja qual for o caminho a ser adotado na nova mastreação e sempre respeitando a segurança, um outro fator a ser considerado é a harmonia entre as velas e ferragens do mastro e as ferragens e cabos do convés. Tudo deve estar harmônico, tudo deve ter o mesmo padrão estético e de época, deve ser um conjunto só. Um novo plano velico deve se encaixar perfeitamente ao desenho do casco, não deve ferir o passado, mas sim continuá-lo. Além disso , tudo deve ser forte, prático, duradouro, e bonito!
É comum ver-se barcos clássicos, bonitos e bem cuidados, com seus planos velico diferentes do original, mas mesmo assim mantendo o estilo da época. Atualizar e modificar a mastreação de um veleiro clássico é uma escolha na maioria das vezes para melhorar a performance e praticidade o que confere ao barco uma velejada mais suave e simples.
CONVÉS
A escolha do deck layout de um clássico também entra no mesmo dilema geral: manter a originalidade, adaptar ou modificar ? Novamente essa escolha acompanha o briefing do barco e deve estar em harmonia com todo o resto. De todas as formas, uma atualização e simplificação dos sistemas de convés é uma atitude inteligente, e não interfere tanto no estilo do barco, a não ser que sejam usados materiais e ferragens muito modernos.
Os barcos clássicos tendem a ter o layout de convés original simples, o que é bom, mas nem sempre eficientes, e a maioria das ferragens de época são de pouca eficiência mecânica e pesadas, mas por outro lado, se mantidas, conferem e mantem aquele ar de autenticidade e tradição histórica ao veleiro. Hoje em dia no mercado são comercializadas essas ferragens “vintage” novas. Muitas peças tem o mesmo desenho de 60-70 anos atrás, e outras como catracas, que evoluíram muito, são fabricadas ainda em bronze mas com mecanismos modernos.
Um fator que interfere muito na “onda” e estilo do barco são os cabos. Os cabos atuais comumente encontrados no mercado são coloridos demais, o que vai em oposição ao padrão de cores do passado. Cabos coloridos cortam a harmonia de um convés clássico. Por outro lado, cabos na cor creme, bege, marrom claro e branco se encaixam perfeitamente no estilo vintage.
Trabalhos de marinharia no convés como costuras, proteções de couro e pinhas, também contribuem muito para a estética do barco, são detalhes que além da beleza mostram cuidado com o barco.
VELAS
O outro componente do “sistema de propulsão” de um barco são as velas. É importante que sejam seguras, bem desenhadas e dimensionadas para o veleiro e área onde se pretende velejar com o barco. Plano velico e mastreação caminham juntos e devem estar em total harmonia com a estética geral do barco. A evolução dos materiais, desenho e fabricação de velas estão num processo constante e interrupto de evolução faz uns 60 anos e assim abrem um leque para escolhas de desenhos, corte, cores e materiais. O mais comum visto nos barcos clássicos é o uso do tecido de dacron usual branco, em corte cross-cut ou radial. É uma opção que não vai para os extremos, nem muito clássico nem muito moderno. A opção com um estilo mais clássico, é o uso de dacron cor creme, fabricado especialmente para barcos clássicos com corte cross-cut. Se a ideia é se aproximar mais ainda a originalidade, um detalhe que encarece a construção mas faz uma grande diferença, é construir as velas com painéis mais estreitos, com a metade da largura comum.
Opções de estilo mais moderno, normalmente usado para barcos clássicos que fazem regata, é a utilização de tecidos laminados, ou mais avançado ainda, o uso de velas laminadas moldadas.
Nas velas de vento e popa, os spinnakers e geannakers, não existe opção de material, utiliza-se o nylon ainda como antigamente. Opções são somente de corte, cor e diagramação dos painéis. Antigamente o corte utilizado dos spinnakers era o chamado radial head, hoje em dia se utiliza o corte tri-radial, que se colorido, tem uma estética moderna, mas se for monocromático não faz diferença. No corte tri-radial, uma opção para se ter uma vela colorida mas com um look antigo, é utilizar 2 ou três cores mas no sentido horizontal, e não radial. Assim mantem-se a estética clássica.
Porém, muitas vezes o uso de spinnakers com cores na estética atual, confere uma sensação de atualidade ao barco quando se veleja, o que de todo não fere o espírito clássico que se deseja.
Gustavo Pacheco é Skipper profissional com muitas mil milhas navegada em diferentes barcos e, já fez 26 travessias do Atlântico. Aprendeu a velejar ainda na era dos barcos de madeira com seu pais, professores de artes e matemática. Daí vem sua paixão por veleiros clássicos e seu olhar sempre preocupado com a beleza e estética dos barcos.
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