Um dos grandes nomes da vela do Brasil, Luiz Alberto Ballarin, ou Lula, conversou com o portal Rumar e contou sua história no esporte e como se tornou um autodidata na construção de barcos, principalmente da classe Pinguim, que foi a base para grandes nomes da vela nacional como Torben Grael, Lars Grael, Alexandre Paradeda, Marco Aurélio Paradeda, Victor Schneider, Claudio Biekarck, Alex Welter, entre outros.
Lula comentou sobre o momento atual da classe que está em baixa e, aprovou o plano do projeto Rumar em revitalizar os Escaleres, barcos-escola de seis metros da Classe Sea Scout, visando o desenvolvimento de jovens talentos para o esporte no país, assim como a iniciação marinheira em geral, nas Escolas Náuticas, Colônias de Pesca, Clubes, Grupos de Escoteiros do Mar de todo o Brasil, etc. Leia a Entrevista sobre a retomada do Barco-Escola!
Rumar – Como começou na vela ?
Lula Ballarin – Morava no Rio de Janeiro, no Cosme Velho. Meu pai era sócio do Iate Clube do Rio de Janeiro e, tinha um Guanabara. Eu estava com uns 6, 7 anos e mantiveram o barco até quando eu completei 12 anos, ocasião em que nos mudamos para São Paulo. Não podíamos ficar longe dos barcos e meu pai se associou ao Yacht Club Sto. Amaro. Meu irmão tinha um Snipe, levou pra SP. Em um domingo estávamos andando pelo clube, um pinguinista me perguntou se eu gostaria de correr uma regata com ele. Comecei como proeiro do barco Micki (Michael) Weinschenck. O barco dele era um xodó, numeral 4234. No ano seguinte, acabei comprando um barco da classe Pinguim, o primeiro “Corumi”, patrocinado pelo meu pai.
Rumar – E como seguiu? Como começou a construir seus próprios barcos?
Lula – Fiquei com ele três anos e com meus 15, 16 anos resolvi vendê-lo para eu mesmo construir. Houve certa discussão em casa, meu pai dizia que o barco era bom, que não precisava e, eu argumentava: farei um melhor! Meu pai comentou que iria pensar. Dei o prazo até o inicio das minhas férias de julho. Vendi o barco e com o dinheiro comprei a madeira e algumas ferramentas. Não tinha prática nenhuma de marcenaria, minha experiência era fazer aeromodelos, lanchinhas pequenas com motor elétrico ou à gasolina e, játinha feito um prolongamento de leme pro meu barco. Decidi que estava apto a construir.
Quando morava no Rio olhava livros de construção de barcos onde expunham formas de construção, até mesmo com moldagem com vapor. Daí resolvi construir um Pinguim. Tinha um mês pra fazer – as férias de julho . Ao mesmo tempo estudei programação PERT (Program Evaluation and Review Technique) como iria construir só, usava na programação o tempo de colagem e grampos como funcionários. No dia 2 de julho 1964 comecei a construção do barco em uma sala nos fundos da casa de meu pai. Trabalhava sem parar e, com o cansaço, cheguei a dormir sobre os desenhos e plantas do Pinguim. Durante a construção, devido à falta de prática, tive alguns problemas. Para construí-lo precisava de um gabarito preso no chão que mantinha as cavernas na vertical. Numa tarde, colei o compensado no fundo, no dia seguinte, quando amanheceu o barco estava completamente torcido, o fundo repuxou inteiro, o gabarito se deslocou, foi um caos. Precisei recomeçar tudo. Fui um dos primeiros a usar cola epoxi, pouca gente usava, para recomeçar, tive que entrar com a serra, recortar todo o compensado do fundo. Que tristeza! . Com isso me atrasei alguns dias. Lá pelo dia 15 de agosto, após 45 dias do inicio da construção, concluí o barco.
Rumar – E quando começou a competir com ele ?
Lula – No dia seguinte ao termino da construção e de montar as ferragens, levamos o barco para o YCSA. Era um sábado, o dia da primeira regata do Campeonato Paulista, montamos o barco e fomos para a raia! Em janeiro de 1966 teve o Campeonato Sul-Americano em Punta del Este, no Uruguai. Fomos rebocando o barco com um Chevrolet 1951 até lá em estrada de terra. Quebramos o para-brisa mas, achamos um lugar em Pelotas pra consertar. Foi uma aventura. Corri o campeonato na proa, com o “Petão” (Peter Reinhardt) no leme. Ficamos em terceiro neste campeonato. Algumas das regatas foram anuladas devido aos fortes ventos, os Pinguins em terra voavam como se fossem caixas de papelão
Em julho fui para o Campeonato Brasileiro em Brasília, eu no leme. Foram 24h de viagem de ônibus, cansativo, mas muito divertido. Na volta quando entrei no ônibus, gritei: “tô vendendo meu barco”. Uma semana depois estava vendido.
Rumar – E construiu outro em seguida?
Lula – Imediatamente! Comprei novamente todo material necessário. Separei desenhos, as plantas construtivas e, como era medidor da flotilha 91, peguei todos os certificados de medição dos quase 100 barcos registrados e fiz tabelas com todas as medidas e assim, descobri todas as tolerâncias da Classe em relação as medidas, as máximas e mínimas. Com estes números em mãos , fiz gráficos de todas as partes importantes das “obras vivas” do casco. Desenhei as cavernas do barco. A partir daí, construí o Corumi 3. Este também terminei no dia da primeira regata, desta vez, da série eliminatória para o Brasileiro e Sul Americano de Porto Alegre. Também cheguei atrasado, já tinha dado a largada, saí bem atrás, não deu pra regular o barco e mesmo assim, ganhamos. Vencemos quatro das seis regatas da série eliminatória. No inicio do ano seguinte, 1967, foi o Brasileiro e Sul-Americano em Porto Alegre. Quando os barcos chegaram, no Veleiros do Sul, os gaúchos olhavam para o Corumi e diziam que não iria aguentar. Fino e leve que era, tudo no mínimo nas medidas, chegamos quase no peso mínimo, não tinha nenhum barco no peso mínimo. Ganhamos várias regatas. Vencemos o Sul-Americano também com ventos fortes. Em uma das regatas, com mais de 60 barcos, sobraram meia dúzia e um deles era o nosso. Chegamos a virar o barco, e como o Rio Guaíba tinha bancos de areia, conseguimos desvirá-lo e continuar. Passou o tempo e, com muitas viagens São Paulo – Rio – São Paulo, sempre em um ônibus que, saia às 23:30 de São Paulo e chegava as 7:00 no Rio fazia visitas ao presidente da CBVM, na época, Almirante Dantas Torres, em seu gabinete na Praia Vermelha. Finalmente, conseguimos passagens para o Mundial em Los Angeles. Lá ficamos em casa de voluntários, um casal de idosos, que nos hospedaram durante o Campeonato. O filho do casal que nos hospedou, produzia embalagens para transporte de máquinas e usava madeira “spruce”, arvore da família das coníferas muito leve e com muita resina. Ele fez a embalagem para nossos mastros e quando chegaram a SP, desmontei a caixa, e aproveitei a madeira. Fiz o terceiro barco construído por mim que, também velejava muito bem. Esse chegou no peso mínimo. Foi impressionante. Depois veio a época de faculdade, vestibular.
Como capitão de flotilha, novamente viajei varias vezes, de ônibus de São Paulo ao Rio para conversar com responsáveis na Marinha do Brasil, para tentar o transporte dos barcos e da comissão brasileira para Buenos Aires, Argentina. Posso lhe dizer que sempre fiquei muito bem impressionado com a receptividade e respeito que tinham conosco.
A negociação foi muito produtiva, conseguimos que levassem as tripulações para correr o Sul-Americano na Argentina. Na época, era um navio,(acho que uma corveta), o “Brachuy” . Embarcamos todos os Pinguins, de São Paulo e do Rio. O ‘Klaus”, Claudio Biekarck, foi correr com o Corumi III e eu fiquei para prestar o vestibular. A cabeça não estava nos exames e sim nas regatas que tinha deixado de participar. Klaus ganhou o campeonato e na festa de encerramento roubaram o barco para tirar as medidas porque o barco andava muito, era fantástico.
Rumar – E como ficou com a faculdade e as regatas?
Lula – Na faculdade prestei outros vestibulares, me afastei da vela, me casei e tivemos filhos maravilhosos que também aderiram ao esporte..
Um certo dia, embaixo no chuveiro coletivo do Yacht de Sto. Amaro, conversando com o Alex Welter, ele falou que estava correndo de Tornado e gostaria de tentar participar das Olimpíadas de Moscou em 1980. Fomos correr uma regata da Escola Naval no Rio para a qual, Alexandre Levy nos emprestou um dos dois que ele tinha. Voltamos para SP, na Via Dutra, pegamos um engarrafamento monstro, cuja a causa era um acidente rodoviário. Posteriormente, viemos a saber que neste acidente havia falecido o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Ao chegar em São Paulo iniciamos o projeto rumo às Olimpíadas de Moscou. Encomendamos as plantas de construção do Tornado, um catamarã. Iniciamos a construção de dois barcos, um para o Alex Welter e outro para mim. Já no final da construção, faltava apenas o deck de proa de um dos cascos e o da popa dos dois cascos e a pintura. Em casa, tivemos um acidente bastante grave e não tive mais condições financeiras e meios de continuar a construção do barco, comprar as ferragens velas e etc. Fiquei afastado por certo tempo, talvez, uns três ou quatro anos. Mais tarde, aproveitei toda a madeira que ainda tinha e finalmente construí o outro Tornado pra mim. Foi incrível, gostava muito do barco, mas vendi pra um velejador do Rio. O primeiro que construí ficou com o Alex Welter. Esse primeiro Tornado, de nome “Odierê” depois, veio a ser comprado pelo Lars Grael.
Novamente, fiquei bastante tempo afastado das regatas, voltei como proeiro correndo em várias classes: 470, Snipe, Lightning, Star e oceano.
Como tínhamos um terreno em Ubatuba, litoral Norte paulista, e pensavamos em construir uma casa de praia, porém na época, os materiais de construção estavam em falta e inflação galopante, aguardávamos a melhor oportunidade para iniciar a construção da casa. Durante um jantar, em conversa com um amigo ele sugeriu a compra de um barco de oceano. Achei a ideia excelente! Abandonamos a ideia da casa e partimos para um Fast 310. Foi quando comecei a velejar de oceano com barco próprio. Ficamos só no cruzeiro. Em, março de 2000, participamos na regata comemorativa “Brasil 500 anos”, com percurso de Lisboa para Salvador. Era o único barco sem dessalinizador. Foi preciso carregar muito peso com a água, estava no limite.
Hoje estamos com mais um, o Corumii (este com dois “i” que é o diminutivo no Tupi), o menininho.
Deixei as regatas há bastante tempo, estou só em regatas virtuais e temos um grupo muito bacana o BST (“Brazilian Sailing Team”) onde conversamos sobre táticas e macetes das regatas virtuais nas quais participamos.
Rumar – Está afastado em definitivo das regatas ?
Lula – Por causa do trabalho, tive uma série de problemas, estava viajando bastante e não dava para competir. Depois que construí e vendi o Tornado, passei um tempo de proeiro em algumas regatas, mas fui obrigado a me afastar. Em nosso barco atual, até brinco com meus amigos, peço para pegar todas as teorias de regatas, técnicas de regata e guardar no armário e não abrir enquanto estivermos velejando e curtindo a natureza. A partir daí fiquei na Vela de Cruzeiro. Faz 30 anos que estou em Angra dos Reis cruzeirando, brincando de casinha no barco.
Rumar – Continua construindo barcos ?
Lula – Parei de construir por falta de espaço. Pensei em construir barcos de outras classes, mas a falta de lugar e disponibilidade me impedem. Quem sabe um dia decidimos fazer alguma coisa.
Rumar – Qual relação com a Vela de hoje em dia ?
Lula – Virtual é a brincadeira do dia a dia e, a Vela de Cruzeiro nos fins de semana pela Baia da ilha Grande. E agora, durante a esta pandemia devido ao COVID-19, passamos nossa quarentena passeando por toda baia, de Marambaia a Paraty Mirim.
Rumar – Qual a importância da classe Pinguim ?
Lula – Infelizmente o Pinguim foi engolido por outras classes. Não só pelo Optmist. É uma pena, pois o Pinguim é um barco formador de timoneiros e tripulantes. No caso do Optmist, só forma timoneiros, no final, muitas crianças se afastam e perdem o interesse pelo esporte e a vela em geral, por falta de estímulo.
Quando você tem um tripulante junto, um “cutuca” e motiva o outro e aí vai participando, aprendendo e correndo regatas, surge uma dinâmica evolutiva. A forma do Pinguim ficou antiquada, existem barcos mais velozes, mas, infelizmente, não vi nenhuma embarcação que pudesse servir de escola como foi o Pinguim . O Optmist é muito individual, não dá a formação que deveria ter. O Pinguim desenvolveu inúmeros bons velejadores. Campeões até mesmo depois de migrarem para outras classes.
Rumar – Entre seus projetos, o Rumar está viabilizando a revitalização do Escaler de seis metros, Barco-Escola que, vai passar por adaptações. Como vê essa iniciativa ?
Lula – A iniciativa do RUMAR é bem bacana, exemplar, qualquer atitude que possa ser feita para que jovens adolescentes possam despertar ou se integrar no espírito “navegacionista” (palavra nova..) é muito bem vinda. Da mesma forma que ensinamos às crianças a comerem de tudo, fazendo-as participar do preparo dos alimentos, algo similar poderia ser feito com aqueles que tem um pequeno interesse pelo mar, por exemplo, fazendo com que possam construir ou reformar as embarcações que irão utilizar. Não conheço o escaler “Flor de Lis”, da Classe Sea Scout, utilizado pelos Escoteiros do Mar mas, com certeza é de grande importância e deveria ser copiado e produzido em locais onde os jovens com gosto apurado pelo mar, pudessem participar de suas construções e reparos. Outra coisa importante, é que o esporte da vela, o velejar, desenvolve no ser humano capacidades que outros esportes não fazem com tanta maestria, por exemplo: ter P.I.Q. (Persistência, Iniciativa e Querer) além dos: senso de responsabilidade, disciplina, tomada de decisões, respeito pela natureza entre outros. Seria de grande proveito que empresas abraçassem o “Projeto do Escaler/Barco escola” e patrocinassem esta ação, que educa, disciplina e engrandece aquele que participa.
Adicionar Comentário