Banquete em San Vicen
Uma das regiões mais perigosas do Caribe é a Passagem de Mona*. Separando a República Dominicana de Porto Rico, este famoso trecho de mar é relativamente longo e bastante turbulento, com correntes contrárias e águas agitadas. No início do mês de abril estávamos prontos para empreender essa travessia. Nessa parte da viagem a equipe seria composta pelo Marcus Sulzbacher, Gui Von Schmidt, eu e um amigo de origem alemã que morava em Nassau, chamado Robert Wagner. Em um projeto com duração de dez meses, como a Expedição Entre Trópicos, íamos mudando a tripulação à medida que avançávamos nos sucessivos trechos. Mas no final da viagem ficou comprovado que nosso método não foi eficiente.
Estávamos na República Dominicana em uma praia próxima ao Cabo de Samaná estudando o momento certo para partir. A Passagem de Mona é mais difícil no sentido República Dominicana – Puerto Rico, pois o vento é contrário na maior parte do tempo. As Pilots Charts dizem que o vento leste sopra 90 % do mês, exatamente na nossa cara. Como tínhamos 120 milhas pela frente era melhor esperarmos uma situação favorável senão as 120 milhas virariam 165 milhas por causa dos bordos que seríamos obrigados a dar. Além de tudo com ventos contrários a viagem demora três vezes mais.
O grupo estava dividido quanto às esperanças de termos uma condição favorável e foi ai que o Robert Wagner teve a ideia de telefonarmos no outro dia bem cedo ao aeroporto para pegarmos a previsão.
Na outra manhã, ainda na mesa do café ouço o Robert, que voltava do telefone público, gritando que o vento havia rondado de leste para noroeste. Não preciso explicar que todos começamos a arrumar as nossas coisas rapidamente, compramos algumas frutas, preparamos os sanduíches e pulamos nos barcos, felizes por deixar a Ilha Espanhola para traz.
Apesar de linda e exuberante, sofremos muito com a burocracia que nos fez perder dois dias, inclusive nos obrigando a viajar até a cidade de Samaná para dar entrada e saída dos passaportes. Existe uma lei na República Dominicana que exige que qualquer embarcação, inclusive de lazer que ao sair de uma praia ela só pode chegar em um porto que tenha Capitânia dos Portos, mas como lá só tem dois Capitânias, uma em cada lado da ilha, é proibido velejar pela costa. O nosso caso chegou até o alto comando da marinha que no final das contas nos liberou.
Velejamos um dia e uma noite sem parar, aproveitando o vento favorável. Nunca foi tão prazeroso velejar à noite, ou melhor, navegar, pois a luz de Puerto Rico refletia no céu e para nós só restava seguir em direção ao pequeno clarão que se formava no horizonte. No barco do Marcus as coisas não estavam tão fáceis, pois o Robert começou a marear assim que escureceu, obrigando-o a velejar toda à noite sem descanso. Depois do acidente nos corais de Turks and Caicos velejávamos com mais procedimentos, especialmente em uma noite como aquela, sem Lua. A cada trinta minutos falávamos no rádio VHF para saber das condições físicas de cada um, e para um barco não se perder do outro mantínhamos a mesma velocidade velejando bem colado. Mesmo na escuridão dava para perceber aquele vulto branco deslizando ao lado. Colamos adesivos refletivos nas velas que brilhavam com o menor sinal de luz.
À medida que nos aproximamos de terra uma forte neblina se formou e passamos a navegar as cegas. O nosso maior temor é que quase todo o tráfego de embarcações do Caribe passava por ali, e as escuras nada podíamos fazer.
O nosso refletor de radar estava preso no estaiamento lateral, ou seja, teoricamente estávamos visíveis aos radares alheios. Não demorou muito para ouvirmos um som ensurdecedor de uma buzina. Era o que temíamos, encontrar um navio bem próximo a Porto Rico onde o tráfego aumenta e ainda por cima com aquela neblina densa à noite. A sensação era de pânico, pois é muito difícil saber em que direção vem aquele som grave e poderoso. Novamente soou e desta vez estava mais perto. O navio passou tão perto de nós que deu para ver as luzes na popa do navio bem alta. O navio devia estar no máximo a 150 metros.
Às dez horas da manhã de um sábado ensolarado chegamos a Puerto Rico. Chegamos a uma praia chamada Aquadilla, um simpático trecho de areias brancas e águas claras. Levamos bastante tempo para subir os barcos para a areia. Exaustos pela duração e tensão da travessia, não nos demos conta que Aquadilla era uma praia de turismo. Como era fim de semana, não demorou muito para encher de gente. Logo havia uma multidão em volta dos barcos. As pessoas perguntavam de onde tínhamos vindo, quais eram nossos planos, etc. Foi uma enxurrada de perguntas e com todo aquele movimento não conseguimos montar as barracas para dormir. O sol de quarenta graus dava vontade de sair da praia, o que não era possível com os barcos cheios de equipamento. Ao longo do dia fomos nos revezando, para ir comer alguma coisa ou descansar na sombra. No final da tarde, depois da praia esvaziar, conseguimos montar as barracas. Então desmaiamos de sono.
Por volta de meia noite acordamos com os gritos do Robert, que estava numa barraca com o Marcos: – “Ladrão, ladrão, ladrão!” O Gui e eu estávamos em outra barraca. Saímos correndo no escuro, ainda meio acordando, e encontramos o Robert assustado: “Tinha um ladrão em cima de mim, tentando roubar minha carteira. O cara abriu a barraca, entrou, e quando me acordei ele saiu correndo”. Voltamos para barraca, para verificar nossas coisas. Descobrimos, para nossa surpresa, que o ladrão tinha levado nossas malas. Estávamos tão cansados que o ladrão abriu a lateral da barraca que era montada em cima do trampolim do barco, e abriu as gaiutas onde estavam as nossas malas. Apesar de não ter dinheiro ou documentos, ali estavam nossas roupas, incluindo a jaqueta de mar do Gui, peça essencial no nosso dia-a-dia de navegação. Corremos para fora da barraca e nos dividimos para procurar alguma pista dos ladrões nos arredores. Obviamente, não encontramos nada. Esgotados, acabamos voltando para as barracas, para dormir um pouco mais, pois continuávamos exaustos.
Pela manhã decidimos ir embora de Aquadilla. A previsão de tempo era bastante desfavorável, indicando fortes ventos contrários e uma ondulação bem grande proveniente de uma tempestade no Atlântico Norte. Mas nossa vontade de ir embora era muito grande. Saímos para o lado norte da ilha, desprotegido, e pegamos um tempo horroroso. A direção do vento combinado com o mar agitado impedia qualquer progresso, além da corrente contra que estava fortíssima. Foi interessante ver um navio cargueiro passar perto de nós, pendulando de um lado para o outro e enterrando a sua enorme proa nas ondas levantando muita espuma. Aquele era um aviso de que o “mar não estava para peixe”.
À medida que lentamente avançávamos contra a natureza percebi que as ondas estavam arrebentando nas praias com muita violência, e pensei que não era prudente continuar, pois cedo ou tarde teríamos que encostar em algum lugar para dormir e ai sim estaríamos encrencados. Varar a arrebentação sempre é um momento delicado e eu não estava disposto a assumir este risco. Consultei o Marcus e o Gui que prontamente concordaram em dar meia volta e retornarmos a Aquadilla.
Depois de cinco horas havíamos avançado apenas dez milhas. Aquadilla, agora apelidada de “armadilha” não demorou em aparecer na nossa frente, a volta foi feita em apenas 40 minutos. Ao chegar enfrentamos novamente toda a função de subir os barcos, armar barracas, etc. No final da tarde apareceram uns pescadores e vieram conversar conosco. Eles ficaram sabendo do roubo e contamos a eles o incidente com detalhes. Ouviram atentamente, sem fazer qualquer comentário. Quando foram embora já estava escuro. Para nossa surpresa, os pescadores voltaram algum tempo depois, com presentes: uma pilha de roupas, deles próprios. Notei que algumas camisas eram novas. Todos nós sentimo-nos constrangidos em receber aqueles presentes que tinham por traz um sentimento de reprovação do acontecimento da noite anterior. Olhei para os pescadores e vi em seus rostos de expressão de vergonha. Entendi que devíamos aceitar, principalmente nós que somos brasileiros, infelizmente acostumados com a violência, quantas vezes não nos envergonhamos também com o que acontece no nosso país. Quando eles partiram, Aquadilla já não parecia mais tão ruim.
À noite, organizamos turnos para ficar vigiando os barcos, que havíamos movido para baixo de um poste de luz. Senti-me um pateta, vagando de madrugada naquela praia deserta, em volta dos barcos. Saímos cedo pela manhã, dessa vez velejando para o sul da ilha, mais protegido do swell e dos ventos.
Mesmo sendo o lado protegido da ondulação do mar encontramos pela frente vento contra e forte. Deixar para traz Aquadilla estava difícil, e após algumas informações dos locais da ilha mudamos de estratégia, e passamos a velejar à noite, pois o vento soprava com boa intensidade e ainda vinha de terra propiciando boa direção. Foram duas noites até Ponce.
Ponce, uma importante cidade costeira do lado sul da ilha. Infelizmente Ponce não tinha polícia federal ou aduana. Para dar entrada no país teríamos de ir até San Juan, capital de Puerto Rico, do lado norte. Deixando os barcos no Iate Clube de Ponce, alugamos um carro para ir até San Juan. De lá o Robert voltaria para Nassau, para retomar seus compromissos, encerrando sua participação na Entre Trópicos. Na polícia federal de San Juan apresentamos nossos passaportes e os documentos do barco. Todos tínhamos visto válido para os Estados Unidos, com exceção do Robert, cujo passaporte alemão dispensava a necessidade de visto. Pelo menos era o que achávamos. Ocorre que quando se entra em território americano pelo mar, o visto é sempre obrigatório. Ao ver o passaporte do Robert, o agente da imigração disse que estávamos infringindo a lei, transportando um imigrante ilegal para o país. Teríamos que pagar uma multa de três mil dólares, e responder a processo. Incrédulo, o Robert ficou iniciou uma inflamada discussão com o agente. Antes que a situação saísse completamente de controle, pedi para o Robert sair da sala. Tentei, então, explicar as circunstâncias da nossa viagem para o agente. A nosso favor, lembrei que tínhamos ido até lá espontaneamente, o que deixava evidente que o problema do visto era desinformação, e não má fé. Depois da cena do Robert o agente não estava com muita disposição de amenizar as coisas. Fiquei duas horas conversando com ele, e consegui reduzir a multa para cem dólares. Robert voltou para Nassau com uma anotação no passaporte, informando que ele recebeu ajuda humanitária, e que tinha 24 horas para sair de Puerto Rico.
Três meses depois seríamos surpreendidos com um processo, contra mim e contra o Marcus, movido pela imigração americana. Uma carta em São Paulo alertava para a necessidade de apresentarmos nossa defesa. Tivemos que contratar um advogado nos Estados Unidos, sob risco de nunca mais poder entrar no país em caso de condenação, o que felizmente não aconteceu.
Com a saída do Robert, ficamos com apenas três tripulantes, precisando de uma quarta pessoa. Meu amigo Henrique Figueroa, que mora em Puerto Rico e é um grande velejador entusiasta do mundo das regatas, nos indicou Carlos, um jovem porto-riquenho. Após uma rápida entrevista ele foi contratado, passando a integrar o grupo até a Venezuela.
Saímos de Puerto Rico em direção a Saint Thomas, nas Ilhas Virgens. De lá, rumamos para Saint Barthelemy, nas Antilhas Francesas. Saint Barthelemy é um lugar charmoso. O píer é tão disputado que pode custar dois mil dólares por dia para um barco grande na época de fim de ano. Apesar do preço, o lugar é lotado, com um grande número de barcos de luxo, com bandeiras dos Estados Unidos, Europa e Oriente Médio. Quando chegamos com nossos pequenos catamarans era de se esperar uma recepção modesta. Aconteceu o contrário. Os franceses são velejadores fanáticos de catamaran, e adoram aventuras náuticas. Ficaram entusiasmados com nosso projeto. A Capitania nos convidou para ficar no píer principal, sem nenhum custo. Assim, eles poderiam vigiar nossos barcos. Adicionalmente, teríamos todos os benefícios, como banheiro com água quente, energia elétrica, etc. Acabamos ficando doze dias no meio da badalação, e foi sensacional. Toda noite éramos convidados por algum barco para jantar a bordo e em seguida íamos a pequena boate continuar a noitada. Fizemos bons amigos em Saint Barth.
Em Saint Barthelemy o Marcus, meu sócio na expedição Entre Trópicos, precisou voltar para o Brasil. Novamente com três na equipe, precisávamos procurar algum velejador para ir até a Venezuela, fechando o trecho do Caribe. Lá íamos reencontrar o Marcus, que estaria voltando do Brasil. Estimamos que a viagem de San Barthelemy até a Venezuela duraria quinze dias, e colocamos um aviso no Iate Clube, buscando alguém disposto a velejar conosco. Conhecemos vários velejadores de beachcats da ilha, mas ninguém parecia disposto a encarar os mais de oitocentos quilômetros até a América do Sul. Uma manhã, um jovem francês que trabalhava como tripulante em um dos veleiros de luxo, nos falou de um sul-africano meio doido, que estava morando em San Martin. Disse que o tal sujeito era um especialista em Hobiecat, e que estava fazendo uns bicos na praia, vendendo protetor solar e alugando cadeira de sol, ou algo assim. Ele podia topar ir para a Venezuela conosco. Achei o perfil interessante, e pedi para o pessoal da vela fazer chegar nele o convite para um bate-papo comigo. É incrível como as mensagens andam rápido entre as ilhas do Caribe. No dia seguinte chegou o Duncan. que veio velejando de Saint Martin em um catamaran de 18 pés. Começamos a conversar e ele disse que me conhecia de algum lugar. Disse que ele também me parecia familiar. Depois de algum tempo de conversa descobrimos que tínhamos disputado o campeonato americano de Hobiecat em 1988, no Texas. Eu representando o Brasil, e ele a África do Sul. Durante o campeonato nos cumprimentamos várias vezes, mas não chegamos a conversar. Assim Duncan Rosse entrou em nossa história. Ele veio em cheio a região do Caribe, começaria no final de junho. Por essa época, já pretendia ter chegado à Venezuela, com razoável folga. Íamos baixando nossa latitude, ainda no hemisfério norte, rumo ao equador. Pernoitamos a primeira noite na Ilha de Nevis, uma ex-colônia inglesa no paralelo 17N. Depois, na Ilha de Guadalupe, ainda possessão Francesa. Dali prosseguimos para a Lês Saintes e, finalmente, para Martinica, numa velejada noturna. Chegamos na Martinica ainda de noite e exaustos preferimos amarrar os barcos em uma poita ao invés de encostar em alguma praia. À noite é sempre perigosa a aproximação de praias, pois nunca sabemos se tem pedras ou não. Pouco depois do nascer do sol acordamos bem atordoados com um francês gritando e gesticulando. Nós estávamos usando a poita dele e sem a menor cerimônia ele cortou o nosso cabo. Depois das duas horas de sono nos restava continuar velejando até uma marina ou uma praia abrigada. Quando estávamos a menos de cem metros da praia, ao fazer uma manobra para mudar de direção, ouvi um som estranho na parte de trás do barco: o travessão traseiro tinha se partido. Um catamaran é construído com dois cascos finos e compridos, que são unidos por dois travessões. Tivemos sorte.
Tínhamos feito uma travessia oceânica, de mais de 70 milhas em mar aberto na noite anterior e navegando com uma ondulação razoável. Se o problema tivesse acontecido em alto-mar e à noite, iria ocasionar sérias dificuldades. Mas, dessas coisas que não se explica, o travessão quebrou exatamente na chegada, já bem próximo da praia. Nem parei o barco, continuando no mesmo bordo até o casco encalhar na areia. Desci com cuidado para não separar os cascos, e subimos o barco para a praia.
Planejamos passar uma semana na Martinica, descansando e em busca de reparo para o travessão quebrado. Liguei para o Marcus, que já estava no Brasil. Ele tinha contratado um cinegrafista, chamado Paulo Viana, para fazer imagens da expedição. Paulo voaria para Miami, e depois para a ilha de Santa Lúcia, onde nos encontraria. Ia navegar conosco durante duas semanas. No telefonema, pedi ao Marcus para verificar se o cinegrafista não poderia trazer um travessão novo. Na volta do telefonema, andando pela praia, encontrei um grupo de franceses que vieram falar comigo. Perguntei se, em suas velejadas pelas ilhas, eles tinham visto um catamaran brasileiro de 55 pés, chamado Vitória Felipe. Os donos do barco, Felipe Furquim e Décio Clemente, eram velhos amigos. O Skipper – a pessoa que toma conta do barco – era o Pedrão, também um bom amigo. Alguns meses antes, ainda no Brasil, quando descrevi para o Felipe o roteiro da Entre Trópicos, ele me contou que pretendia velejar pelo Caribe mais ou menos na mesma época. Mas sabíamos que seria difícil, senão impossível, coordenar um encontro. Para minha surpresa, os franceses disseram que o Vitória Filipe estava na marina do Iate Clube, que ficava na praia ao lado. O francês passou um rádio para o Iate Clube e pediu para falar com o Pedrão. Ele ficou surpreso com nossa súbita aparição, e veio imediatamente com o dingue do Vitória para nos rebocar até o clube.
Passados dois dias, encontramos um estaleiro que colou por dentro uma madeira no travessão quebrado, numa solução provisória. Com o remendo concluído, saímos velejando junto com o Vitória Felipe para Santa Lúcia, onde íamos encontrar o Felipe e o cinegrafista Paulo, vindo do Brasil. Em Santa Lúcia, após um dia de espera, fui buscar o Paulo no aeroporto. No desembarque ele se apresentou e me contou que seu apelido era Pilha. Baixinho, com menos de 1,60m, Pilha se mostrou um companheiro extraordinário. Carinhosamente o chamávamos de DoubleWay, em referência àquela pilha pequenina, mas cheia de energia. Na volta do aeroporto expliquei ao “Pilha o seguinte: o barco é muito pequeno, essa mala gigante que você trouxe vamos ter que mandar de volta para Miami. Não tem como carregar uma mala dessas no barco”. Ele me olhou desconfiado, e pediu para ver o barco. Apontei para nossos barcos que estavam na areia. Na mesma linha de visada estava o Vitória Felipe, ancorado a uns 50 metros da praia. Ele nem enxergou os catamarans. Olhou para mim desapontado e disse: “Pô Betão, essa mala não cabe naquele barco?” Ai expliquei: “De jeito nenhum Pilha. Estou falando dos barcos pequenos ali na areia, não do grandão que está ancorado lá fora”. Pilha levou um susto. Ele não podia acreditar: “Esses são os barcos em que eu vou viajar?” Confirmei, me dando conta que o Marcus tinha economizado nos detalhes quando explicou a ele o projeto. Então me ocorreu perguntar: “Pilha, você já velejou?” “Não, não tenho a menor idéia de como é”, foi sua resposta. Concluí que se ele não tinha idéia do que era velejar, tampouco saberia avaliar os riscos que teria pela frente. Não teria expectativas, nem medo. Apesar dos óbvios riscos envolvidos, resolvi incorporar o Pilha ao time, pois não tínhamos opção. Tinha gostado de seu jeito simples e honesto. Algo me dizia que não teríamos nenhum problema. Disse ao Pilha que formávamos uma equipe de vela muito experiente, que navegando conosco ele podia ficar tranqüilo. Concordou com um sorriso, e nunca mais se falou no assunto. Pilha se revelou umas das pessoas mais interessantes que conheci em minhas viagens. Inteligente, simples e esforçado. Nunca reclamou de nada. Excelente profissional, com um grande senso de humor. Navegou no meu barco, e ia fazendo as imagens, numa experiência para nós até então inédita na Entre Trópicos. Aprendeu a velejar e, ao final de seu período conosco, estava trabalhando como qualquer outro tripulante.
Assim, ao sair de Santa Lúcia, no meio do mês de maio, éramos cinco: Duncan, Pilha e eu, no meu barco; Gui e Carlos, no outro catamaran. Com o Felipe Furquim embarcado no Vitória, saímos juntos de Santa Lúcia para a Ilha de Bequia. Lá, o Felipe propôs que fossemos para as Granadinas, “a região mais linda das Antilhas, um lugar que costumo ir sempre”. Felipe sempre teve um gosto refinado. Sugeriu irmos para Petit San Vincent, mostrando no mapa uma pequena ilha na direção sul. Deixamos Bequia pela manhã, com um dia de sol maravilhoso, em um mar turquesa de águas transparentes.
O vento soprava de 20 a 25 nós, em uma direção favorável. Velejada perfeita. Pilha ia no Vitória Felipe, para fazer algumas imagens externas dos barcos. Como nossos catamarans andavam mais rápido que o veleiro grande, fomos nos distanciando, e chegamos bem antes em Petit San Vincent. O que o Felipe esquecera de mencionar é que a ilha toda é um resort. Não é um lugar que você chega, desembarca na praia, e vai ficando. Ao nos aproximarmos, deparamos com um cenário de sonho. Lindos bangalôs em praias de areias brancas, cadeiras e guarda-sóis preguiçosamente abandonados na luz dourada do final da tarde. Nos dirigimos para um canto da praia, e subimos os barcos para a areia. Disse ao Duncan e que íamos montar acampamento ali mesmo, pois tínhamos chegado ao paraíso. Duncan me olhou e, no seu melhor tom irônico-sul-africano, fez um aceno para eu olhar para trás. “É melhor pedir permissão para o sujeito”, disse Duncan. Virei e vi um jovem negro, alto e forte, pilotando um carrinho elétrico, desses usados em campos de golfe, vindo em nossa direção. O cara parecia o Ben Johnson.
Falando inglês (Petit San Vicent é parte do Império Britânico) ele disse que não podíamos ficar ali, porque estávamos em um resort fechado, numa praia particular. Argumentei com ele que estávamos muito cansados, e que não podíamos sair naquele horário. Se nos deixassem pernoitar, nos comprometíamos a sair bem cedo no dia seguinte. A reposta veio sem rodeios: “Não posso dar esta autorização. Você terá que falar com o gerente. Por favor, venha comigo, levo você até ele”. Subimos no carro de golfe, o Gui e eu, para tentar um acordo com o pessoal da gerência. Formávamos uma dupla pouco elegante quando entramos na sala do gerente: roupa de borracha pingando, pele salgada, rosto todo queimado, e cabelo de quem enfrentou uma tempestade. Nas circunstâncias, não achei que nossa aparência era algo relevante. Na nossa frente estava um senhor inglês de cabelos brancos, pele morena com olhos azuis muito atentos, e camisa florida. Com um olhar ao mesmo tempo amável e direto, ele disse: “Boa tarde senhores, me chamo John Mallow. Como posso ajudá-los?” A cena era tão cômica. Contamos resumidamente que estávamos vindo de Hobiecat de Miami, que já tínhamos percorrido uma distância considerável, e que íamos para a América do Sul, Brasil. O Gui iniciou um pedido de desculpas, explicando que não sabíamos que essa era uma ilha tão exclusiva, que estávamos muito cansados, etc… Ele não me deixou concluir: “Vocês chegaram até aqui de Hobiecat, vindos de Miami?” perguntou incrédulo. “Preciso ver os barcos!” Disse e, pegando seu chapéu, nos apontou a porta., onde nos esperava o carrinho no gramado. Voltamos os quatro para a praia no tal carrinho. Logo deu para perceber que ia rolar uma bocada, pois o entusiasmo do Mr. John era visível.
Com um olhar indefinido Mr. John ficou olhando para os dois catamarans na praia por um longo tempo. Então, voltando-se para mim, disse: “Adoro esse barco. Corri muitas regatas de catamaran em minha juventude, na Inglaterra. Mas isso foi há muito tempo”. Virando novamente para os Hobies, perguntou do que precisávamos. Disse que queríamos permissão para passar a noite. Acrescentei que pretendíamos montar as barracas num canto da praia que não chamasse atenção. E que não precisávamos de mais nada, pois tínhamos nossas próprias provisões. Prometi que partiríamos bem cedo, na manhã seguinte.
A permissão foi dada e ele gentilmente nos perguntou o que precisávamos. Respondi que a coisa mais importante era água doce para um banho, para os barcos e água para cozinhar. Curioso ele nos perguntou como é que nós comíamos, e o qual era o cardápio. Contei que o jantar era comida liofilizada e era bastante prático cozinhar. Bastava ferver a água e jogá-la na embalagem do alimento liofilizado. Tínhamos desde Beef Bourguinon até arroz com bacalhau.
Depois do banho caprichamos na roupa, aliás, só tínhamos um jogo de bermudas, camisa Pólo e sapatos Topsider e fomos tomar um refrigerante na área social do Clube.
Bem felizes por mais uma etapa cumprida, sentados em um belo deck na varanda toda florida com uma vista maravilhosa para a baia de águas turquesas vimos o Victória Felipe chegar vagarosamente e ancorar bem em frente ao píer.
Na época, a vida de Petit San Vincent girava em torno do resort, que tinha somente bangalôs. Eles ficavam posicionados um longe do outro, para garantir privacidade. O serviço era individual, e havia mais gente atendendo do que hospedes. A diária por pessoa ficava em torno de 700 dólares. Para pedir alguma coisa você levantava uma bandeira no seu bangalô, seguindo um código do hotel. Os hospedes não eram incomodados ou interrompidos, de nenhuma forma. Entre várias atividades oferecidas, era possível fazer equitação, velejar, ter aulas de mergulho, jogar tênis, etc. O bar-restaurante, na piscina junto à praia, era uma atração à parte, e incluía uma área exclusiva para sócios.
Em pouco tempo, Felipe, Pedrão e o Pedro Sedó, convidado do Felipe, se juntaram a nós no bar. Felipe e o amigo Pedro estavam elegantíssimos, bem apropriados para a situação. Pediram um coquetel da casa, daqueles com guarda-chuvinha. Felipe comentou que costumava vir sempre ali, e começou a discorrer sobre o local. Reclamei do fato de ele não ter nos avisado que era um lugar privado, e contei-lhe do nosso constrangimento na chegada. Ele riu e disse: “Também Betão, acho que nunca alguém chegou nesta ilha de Hobiecat… Aqui só vem barco grande, este é um lugar superexclusivo.
Nisso apareceu o funcionário que havia nos recebido na praia, em um inacreditável smoking preto. Parou o carrinho elétrico ao lado da nossa mesa e disse, se dirigindo a mim: “Senhor Pandiani, Mr. John espera vocês para jantar. Estamos oferecendo um jantar na praia, para os sócios do resort, e temos uma mesa para vocês”. Levantei dando risada e pedi licença ao Felipe: “Desculpe, temos de ir. Vamos rapazes, não queremos deixar Mr. John esperando…” Felipe estava boquiaberto. Saímos sob os olhares surpresos do Felipe e dos dois Pedros, que se ergueram um brinde em nossa homenagem.
Nos enfiamos os cinco em cima do carrinho e fomos com o prestativo amigo para a praia. Na chegada, não acreditei: o carrinho parou numa clareira gramada, na borda de uma praia que parecia ter a areia escovada. O local era demarcado por um semicírculo de coqueiros iluminados. Bem no centro estava uma banda caribenha, com dez músicos, tocando violões acústicos e percussão. Quando nos viram, abriram um sorriso de orelha a orelha. Parece que os outsiders se identificam. Todos os convidados estavam vestidos formalmente, os homens de blazer, e as mulheres de vestido longo. Era uma noite de temperatura amena, não muito quente. Mr. John se apressou em nos receber, e nos conduziu até uma mesa reservada bem próxima a dele. Vimos que todas as pessoas nos olhavam, éramos naquele momento o centro das atenções. Notando nossa timidez, Mr. John falou: “Vocês são meus convidados. Contei para nossos hospedes sobre vocês. “Vocês podem beber o que quiserem, temos champagne, whisky, vinho, sintam-se em casa. Quando quiserem podem servir-se”.
A comida foi oferecida em um buffet que terminava numa grelha, com uns oito metros de comprimento. Os pratos incluíam lagosta, filé, camarão gigante, e uma grande variedade de peixes e um buffet com vários tipos de soufflès. Primeiro veio o Champagne depois começamos a beber vinho tinto, e ai foi um deus-nos-acuda. Falei pro pessoal “Olha, vocês podem ir se servir quantas vezes quiserem. Mas, por favor, não voltem com o prato empilhado de comida”. Não adiantou nada. Quando vi, lá vinha o Carlos com uma lagosta inteira em cima de uma posta de filé mignon. Comemos feito náufragos, e não conseguíamos parar de rir. Acho que ríamos porque naquela noite a nossa perspectiva era fazer um acampamento e comer a nossa querida ração, mas a vida tem destas coisas, e quando você menos espera aparece uma situação deliciosa valorizando aquele momento ao máximo. Beber água quando se tem sede é maravilhoso, poder descansar no saco de dormir quando se está exausto é uma delícia e poder comer uma lagosta em Petit San Vicent não tem palavras, principalmente na nossa situação.
Pela manhã, fomos ao escritório do Mr. John nos despedir e trocar endereços. Ele lamentou não podermos ficar mais. Partimos no meio da manhã. De lá, navegamos para Union Island, e nesse ponto nos separamos do Vitória Felipe, que seguiu para Barbados. Fomos para Granada, em direção ao sul das Antilhas, e depois rumo à Venezuela. A esta altura, Duncan pediu para continuar viagem até o Brasil. Alguns dias antes, tinha contado a ele que nosso roteiro incluía os rios da bacia amazônica, em plena floresta. Admirado, ele vinha perguntando sobre o planejamento e logística da viagem, datas previstas, etc. Estava fascinado pelo projeto. Fiquei contente em tê-lo como membro permanente. Sabia que ele tinha grandes qualidades como velejador, e seu background de engenheiro também seria muito útil. Quando chegamos em São Paulo, Duncan acabou ficando hospedado na minha casa por quatro meses. Um certo dia eu disse “Duncan, acho que tenho algumas fotos daquele campeonato que nós corremos no Texas”. Encontrei um álbum de fotografias e, apesar de nunca termos conversados na ocasião, Duncan aparecia em três fotos. Ano passado, quando estava organizando os porta-retratos do meu criado mudo, achei uma outra foto do Texas. Atrás de mim, em segundo plano, está passando o Duncan, dando tchauzinho.
Alguns anos mais tarde Duncan voltou para o mundo das competições e em um mundial de Hobiecat 16 na Espanha conheceu uma jovem brasileira chamada Patrícia Kirschener que competia pelo Brasil. Apaixonaram-se e se casaram. Detalhe, Patrícia havia sido minha proeira durante cinco anos na minha época de Hobiecat 16. As duas pessoas que mais tempo velejaram comigo em épocas diferentes vieram a se conhecer no outro lado do mundo, e agora talvez possamos dizer que o mar nos uniu, ou terá sido o vento. Não sei, mas o Duncan se tornou uma das pessoas mais importantes nas minhas viagens, e juntos novamente fomos para a Antártica em 2003, e em 2004 corremos a regata mais longa e difícil do mundo para catamarans sem cabine, a Atlantic 1000.
Beto Pandiani
* O Canal de Mona ou passagem de Mona fica entre a República Dominicana e Porto Rico. O canal é a principal via marítima entre os dois países. O canal de Mona é também uma pequena passagem entre o Oceano Atlântico e o Mar das Antilhas. O canal banha cidades como Mayagüez. A largura do canal chega a mais de 380 km. para meu barco, e o Gui foi para o outro barco, com o Carlos. Com a tripulação completa, estávamos prontos para deixar Saint Barthelemy.
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